POÈME TRADUIT
Celebração da espécie
Claude Ber, tradução Leo Gonçalves
Como todos os da minha espécie, eu gostaria de celebrar a minha espécie. Pois minha espécie celebra tudo de tudo de minha espécie.
Minha espécie celebra a felicidade de sua espécie, a dor e o prazer de sua espécie. Minha espécie celebra o nascimento, a morte, as idades, as separações, os reencontros de sua espécie. Minha espécie celebra a alegria, o êxtase, o sofrimento, a loucura, o horror, os crimes, os poetas, os sábios, os sabichões, os heróis, os reis, os profetas, os falsos profetas, os carrascos, os mártires, os tiranos, os criminosos da minha espécie.
Assim é minha espécie que celebra qualquer coisa de sua espécie que goza tanto da vida quanto da morte de sua espécie.
Pois minha espécie é uma espécie que destrói sua própria espécie.
Minha espécie se extermina em nome do mal como do bem, do passado como do futuro de sua espécie em nome de suas terras, de seus deuses, de seu ouro, de suas crenças como de suas descrenças.
Tudo cabe tudo é festa na carnificina de minha espécie por minha espécie. Minha espécie é a melhor auxiliar da morte e dos sofrimentos de sua espécie. Minha espécie destripa minha espécie em nome do amor, da liberdade, da justiça, da verdade e de todos os antigos e futuros paraísos da espécie.
Minha espécie devasta minha espécie em nome da humanidade como da desumanidade de minha espécie. Minha espécie polui o que ela inventa de mais sagrado no monturo de minha espécie.
E minha espécie mata e trata as outras espécies como sua própria espécie. Minha espécie empilha os bichos que ela come em hangares onde eles apodrecem vivos e prende em campos onde apodrecem vivos os membros de minha espécie. Minha espécie enforca, fuzila, bombardeia, intoxica, desmembra, esfola, apunhala os homens, as mulheres e as crianças de sua espécie.
Assim é minha espécie mais sanguinária e malfeitora que qualquer espécie.
Mesmo os porcos têm mais partes divinas em seus chiqueiros que minha espécie. Mesmo os porcos têm mais chances de ganhar a eternidade que minha espécie que martiriza toda espécie incluindo sua própria espécie.
Como pode alguém celebrar uma espécie tão nociva como a minha espécie? Uma espécie que esquece ávida e que se submete aos piores da espécie e aniquila os melhores de sua espécie para em seguida celebrá-los.
Pois minha espécie se resgata e compra sua humanidade celebrando as vítimas de minha espécie e os cacos de luz que clareiam a noite de minha espécie servem de perdão à crueldade de minha espécie.
É preciso ser uma espécie descerebrada como o é minha espécie para crer que um deus todo poderoso possa absolver seus crimes contra sua espécie. É preciso estar desnorteado como está a minha espécie para imaginar que alguém infinito possa se parecer com aquele que inventa a sua imagem a selvageria de minha espécie.
Pois minha espécie se serve de seus deuses para levar à morte os membros de sua espécie. Minha espécie pode louvar o criador de toda espécie e depois sair de suas orações crucificar, lapidar, degolar em seu nome outros membros de minha espécie.
Como acreditar nos deuses de minha espécie que são deuses defecados pela cabeça degenerada da minha espécie?
A fenda de infinito que atravessa o nome de deus em minha espécie é levada à medida da sujeira de minha espécie. E nenhum deus pode ressuscitar a alma de minha espécie assassinada por minha espécie.
Assim é minha espécie que endossa a seus deuses a sujeira da minha espécie.
Quem salvará minha espécie de minha espécie? Uma espécie que grita seus assassinatos é uma espécie condenada à não eternidade de sua espécie.
A alma da minha espécie derrete como gelo entre as mãos sangrentas de minha espécie carregada por seu medo e sua paixão de morte. Pois minha espécie passa o mais claro de sua vida amontoando riquezas e orações contra a morte e subtraindo a vida para se entregar à morte. Minha espécie dispensa tesouros de inteligência persuadindo-se de que a morte é a vida e de que a vida é a morte. Minha espécie tem vergonha do desejo e da vida aos quais ela prefere a putrefação da morte. Minha espécie prefere se insultar pelos órgãos e os atos do prazer de sua própria espécie que aceitar a morte.
Minha espécie tem uma perversão de alma infinitamente mais grave que as perversões do pobre corpo animal de minha espécie. É preciso estar em pedaços como a minha espécie para se enterrar viva na morte e devotar sua vida à morte.
Mas assim é minha espécie que prefere os delírios de seu espírito doente à fragilidade mortal de seu corpo.
Dupla e dúplice é minha espécie que martiriza o corpo animal de minha espécie por medo da morte e se consola da morte contra a carne animal de minha espécie.
Pois minha espécie se enrosca sob os mamilos das mães de sua espécie e entre os braços e as coxas dos outros membros de sua espécie para esquecer a morte.
Minha espécie destrincha os corpos das mães de sua espéciee, abate os velhos de sua espécie, esquarteja as mulheres de sua espécie, arranca os culhões dos homens de sua espécie depois brande esses troféus para persuadir a morte.
Minha espécie pode de manhã ninar suas crianças com olhos de cervo, sair para desventrar duas horas depois e em seguida lavar o sangue das mãos na torneira antes de deleitar de novo a progenitura de minha espécie.
Minha louca espécie enlouquecida pelo tempo ínfimo de sua espécie prefere morrer sua vida que viver a duração tão curta de seu corpo.
Minha espécie aterrada pela morte se precipita na morte por pavor da morte.
Minha espécie cava na sua carne o rastro da morte.
E a alma de minha espécie degringola no cu da morte.
Assim é a instabilidade apavorada de minha espécie sovada de nuvem e de lama e que enche de lama e de nuvem as fossas da morte.
Infinitas são a burrice e o orgulho da minha espécie que sacrifica minha espécie à sua gulodice de bens durante sua vida e sua gulodice de sobrevida após a morte.
É preciso estar embrutecido como está a minha espécie para destruir a terra, pagar a ela um imposto sobre a destruição da terra e continuar a destruí-la até sua própria morte.
É preciso estar cego como o está minha espécie para não ver que a terra e o universo não estão nem aí para a minha espécie.
Mas a imensidão da pretensão e da imbecilidade da minha espécie é o único infinito acessível a minha espécie.
Minha espécie faz de sua vida o acólito da morte.
Minha espécie enxuga seu futuro no tapete da morte.
Toda a vitalidade da minha espécie se consome em encher a pança da morte. A encher o buraco do ventre da morte pela morte.
E a morte transborda na vida de minha espécie, recobra a vida de minha espécie, enfia debaixo dela a vida de minha espécie.
A morte goza na minha espécie.
Assim celebrar a minha espécie vira celebrar a morte.
Se eu pudesse, eu sairia da minha espécie, mas eu sou da mesma espécie que os outros membros da minha espécie.
Como todos os da minha espécie, eu louvo e vitupero minha espécie. Meu medo diante da crueldade da minha espécie faz de mim um membro comum da minha espécie, que se distingue pelo amor e pelo ódio de sua espécie.
Como todos os membros da minha espécie, eu sou dessa espécie que estrangula e abraça, abençoa e amaldiçoa os membros de sua espécie.
A única saída para um membro da minha espécie consciente da periculosidade de sua espécie é se imolar ou pedir para ser executado por sua espécie. A única saída que os membros clarividentes de minha espécie têm para escapar da vergonha e da fatalidade de minha espécie é ser deixado para morrer por sua espécie.
Assim os membros de minha espécie cuidadosos da minha espécie não têm outra escolha a não ser entre o assassinato e a morte.
Dupla e dúplice é minha espécie que celebra igualmente a destruição e o sacrifício dos membros de sua espécie.
Dúplice e dupla é minha espécie que protege e sufoca contra seu peito os membros de sua espécie.
Pois minha espécie aperta em suas mãos as mãos de minha espécie. Minha espécie acolhe no calor das dobras de seu corpo o corpo de minha espécie. A ternura de minha espécie faz curativos nas feridas da minha espécie. Minha espécie abre desesperadamente seu coração e sua alma a minha espécie. Minha espécie ilumina a noite de minha espécie.
Mas tão grande é a versatilidade volátil da minha espécie que basta um arranhão com a unha para que ela caia prosternada de novo diante da morte.
Assim é minha espécie que amassa o pão da vida e compartilha o pão da morte.
A sede de paz da minha espécie é um fio de palha carregado pela violência de minha espécie. A animalidade humana da minha espécie é uma lágrima afogada na torrente da desumanidade humana da minha espécie. A devoção de minha espécie é um punhado de terra arrancada do continente de ferocidade da minha espécie. A coragem da minha espécie diante da morte é um grão de areia diante da covardia da minha espécie que se entrega à morte dando a morte à sua espécie.
Pois minha espécie inventou mil maneiras de assassinar minha espécie, mas nenhuma única maneira de amar continuamente os membros da sua espécie.
Amar sua espécie está acima das forças da minha espécie.
Todas as fontes de fraternidade e compaixão de minha espécie, todas as capacidades de sentir e de pensar da minha espécie são insuficientes para conseguir amar continuamente uma tal espécie.
É preciso ser uma joia da espécie para não condenar às gemônias uma espécie tão limitada e destrutiva como minha espécie. É por isso que minha espécie celebra as joias de sua espécie que conseguem não envergonhar sua espécie.
Mas minha espécie é invejosa demais e ciumenta para celebrar vivas as joias de sua espécie. Minha espécie não celebra se não estão mortos os benfeitores de sua espécie e se lava das suas infâmias pelo remorso.
Assim é minha espécie que adora o remorso e os profetas do remorso que lhe intimam a se arrepender para melhor se submeter à morte. Assim é minha espécie sempre ganhadora na loteria da morte.
O coração da minha espécie é a cova metafísica da morte.
Mas no seu coração minha espécie não cessa de chorar a morte e seus mortos.
Tal é minha espécie que chora as vítimas e os mortos dos quais ela preenche a história da minha espécie.
Tal é minha espécie que celebra a medula da vida nos ossos da morte.
Minha pobre espécie sofre da doença e da dor da morte.
Minha infeliz espécie enlouquecida pela morte se joga loucamente no pescoço da morte. Minha miserável espécie morre de ter dado nome à morte.
Como celebrar essa trágica espécie que se debate mortalmente em seu terror de morte?
Como celebrar a insubmissão da minha espécie subserviente da minha espécie, o riso cósmico da minha espécie diante da inconsequência da minha espécie, a revolta tenaz da minha espécie contra a tirania da minha espécie, a doçura delicada da minha espécie ultrajada pela brutalidade da minha espécie, a resistência inflexível da minha espécie torturada por minha espécie, a dignidade da minha espécie humilhada por minha espécie, os tesouros da inteligência da minha espécie dilapidados pela tolice da minha espécie, a generosidade da minha espécie limada pela avareza da minha espécie, a engenhosidade da minha espécie engambelada pela rapacidade da minha espécie, a potência da minha espécie submergida pela impotência da minha espécie, a lucidez da minha espécie aniquilada pela cegueira da minha espécie, a grandeza da minha espécie corroída pela mesquinhez da minha espécie, a esperança da minha espécie sufocada sob o desespero da minha espécie, a rebelião obstinada da minha espécie esmagada pela minha espécie, os soluços da minha espécie conduzida pela minha espécie no vale da morte?
extrait de IL Y A DES CHOSES QUE NON, Editions Bruno Doucey
Claude Ber, tradução Leo Gonçalves
Como todos os da minha espécie, eu gostaria de celebrar a minha espécie. Pois minha espécie celebra tudo de tudo de minha espécie.
Minha espécie celebra a felicidade de sua espécie, a dor e o prazer de sua espécie. Minha espécie celebra o nascimento, a morte, as idades, as separações, os reencontros de sua espécie. Minha espécie celebra a alegria, o êxtase, o sofrimento, a loucura, o horror, os crimes, os poetas, os sábios, os sabichões, os heróis, os reis, os profetas, os falsos profetas, os carrascos, os mártires, os tiranos, os criminosos da minha espécie.
Assim é minha espécie que celebra qualquer coisa de sua espécie que goza tanto da vida quanto da morte de sua espécie.
Pois minha espécie é uma espécie que destrói sua própria espécie.
Minha espécie se extermina em nome do mal como do bem, do passado como do futuro de sua espécie em nome de suas terras, de seus deuses, de seu ouro, de suas crenças como de suas descrenças.
Tudo cabe tudo é festa na carnificina de minha espécie por minha espécie. Minha espécie é a melhor auxiliar da morte e dos sofrimentos de sua espécie. Minha espécie destripa minha espécie em nome do amor, da liberdade, da justiça, da verdade e de todos os antigos e futuros paraísos da espécie.
Minha espécie devasta minha espécie em nome da humanidade como da desumanidade de minha espécie. Minha espécie polui o que ela inventa de mais sagrado no monturo de minha espécie.
E minha espécie mata e trata as outras espécies como sua própria espécie. Minha espécie empilha os bichos que ela come em hangares onde eles apodrecem vivos e prende em campos onde apodrecem vivos os membros de minha espécie. Minha espécie enforca, fuzila, bombardeia, intoxica, desmembra, esfola, apunhala os homens, as mulheres e as crianças de sua espécie.
Assim é minha espécie mais sanguinária e malfeitora que qualquer espécie.
Mesmo os porcos têm mais partes divinas em seus chiqueiros que minha espécie. Mesmo os porcos têm mais chances de ganhar a eternidade que minha espécie que martiriza toda espécie incluindo sua própria espécie.
Como pode alguém celebrar uma espécie tão nociva como a minha espécie? Uma espécie que esquece ávida e que se submete aos piores da espécie e aniquila os melhores de sua espécie para em seguida celebrá-los.
Pois minha espécie se resgata e compra sua humanidade celebrando as vítimas de minha espécie e os cacos de luz que clareiam a noite de minha espécie servem de perdão à crueldade de minha espécie.
É preciso ser uma espécie descerebrada como o é minha espécie para crer que um deus todo poderoso possa absolver seus crimes contra sua espécie. É preciso estar desnorteado como está a minha espécie para imaginar que alguém infinito possa se parecer com aquele que inventa a sua imagem a selvageria de minha espécie.
Pois minha espécie se serve de seus deuses para levar à morte os membros de sua espécie. Minha espécie pode louvar o criador de toda espécie e depois sair de suas orações crucificar, lapidar, degolar em seu nome outros membros de minha espécie.
Como acreditar nos deuses de minha espécie que são deuses defecados pela cabeça degenerada da minha espécie?
A fenda de infinito que atravessa o nome de deus em minha espécie é levada à medida da sujeira de minha espécie. E nenhum deus pode ressuscitar a alma de minha espécie assassinada por minha espécie.
Assim é minha espécie que endossa a seus deuses a sujeira da minha espécie.
Quem salvará minha espécie de minha espécie? Uma espécie que grita seus assassinatos é uma espécie condenada à não eternidade de sua espécie.
A alma da minha espécie derrete como gelo entre as mãos sangrentas de minha espécie carregada por seu medo e sua paixão de morte. Pois minha espécie passa o mais claro de sua vida amontoando riquezas e orações contra a morte e subtraindo a vida para se entregar à morte. Minha espécie dispensa tesouros de inteligência persuadindo-se de que a morte é a vida e de que a vida é a morte. Minha espécie tem vergonha do desejo e da vida aos quais ela prefere a putrefação da morte. Minha espécie prefere se insultar pelos órgãos e os atos do prazer de sua própria espécie que aceitar a morte.
Minha espécie tem uma perversão de alma infinitamente mais grave que as perversões do pobre corpo animal de minha espécie. É preciso estar em pedaços como a minha espécie para se enterrar viva na morte e devotar sua vida à morte.
Mas assim é minha espécie que prefere os delírios de seu espírito doente à fragilidade mortal de seu corpo.
Dupla e dúplice é minha espécie que martiriza o corpo animal de minha espécie por medo da morte e se consola da morte contra a carne animal de minha espécie.
Pois minha espécie se enrosca sob os mamilos das mães de sua espécie e entre os braços e as coxas dos outros membros de sua espécie para esquecer a morte.
Minha espécie destrincha os corpos das mães de sua espéciee, abate os velhos de sua espécie, esquarteja as mulheres de sua espécie, arranca os culhões dos homens de sua espécie depois brande esses troféus para persuadir a morte.
Minha espécie pode de manhã ninar suas crianças com olhos de cervo, sair para desventrar duas horas depois e em seguida lavar o sangue das mãos na torneira antes de deleitar de novo a progenitura de minha espécie.
Minha louca espécie enlouquecida pelo tempo ínfimo de sua espécie prefere morrer sua vida que viver a duração tão curta de seu corpo.
Minha espécie aterrada pela morte se precipita na morte por pavor da morte.
Minha espécie cava na sua carne o rastro da morte.
E a alma de minha espécie degringola no cu da morte.
Assim é a instabilidade apavorada de minha espécie sovada de nuvem e de lama e que enche de lama e de nuvem as fossas da morte.
Infinitas são a burrice e o orgulho da minha espécie que sacrifica minha espécie à sua gulodice de bens durante sua vida e sua gulodice de sobrevida após a morte.
É preciso estar embrutecido como está a minha espécie para destruir a terra, pagar a ela um imposto sobre a destruição da terra e continuar a destruí-la até sua própria morte.
É preciso estar cego como o está minha espécie para não ver que a terra e o universo não estão nem aí para a minha espécie.
Mas a imensidão da pretensão e da imbecilidade da minha espécie é o único infinito acessível a minha espécie.
Minha espécie faz de sua vida o acólito da morte.
Minha espécie enxuga seu futuro no tapete da morte.
Toda a vitalidade da minha espécie se consome em encher a pança da morte. A encher o buraco do ventre da morte pela morte.
E a morte transborda na vida de minha espécie, recobra a vida de minha espécie, enfia debaixo dela a vida de minha espécie.
A morte goza na minha espécie.
Assim celebrar a minha espécie vira celebrar a morte.
Se eu pudesse, eu sairia da minha espécie, mas eu sou da mesma espécie que os outros membros da minha espécie.
Como todos os da minha espécie, eu louvo e vitupero minha espécie. Meu medo diante da crueldade da minha espécie faz de mim um membro comum da minha espécie, que se distingue pelo amor e pelo ódio de sua espécie.
Como todos os membros da minha espécie, eu sou dessa espécie que estrangula e abraça, abençoa e amaldiçoa os membros de sua espécie.
A única saída para um membro da minha espécie consciente da periculosidade de sua espécie é se imolar ou pedir para ser executado por sua espécie. A única saída que os membros clarividentes de minha espécie têm para escapar da vergonha e da fatalidade de minha espécie é ser deixado para morrer por sua espécie.
Assim os membros de minha espécie cuidadosos da minha espécie não têm outra escolha a não ser entre o assassinato e a morte.
Dupla e dúplice é minha espécie que celebra igualmente a destruição e o sacrifício dos membros de sua espécie.
Dúplice e dupla é minha espécie que protege e sufoca contra seu peito os membros de sua espécie.
Pois minha espécie aperta em suas mãos as mãos de minha espécie. Minha espécie acolhe no calor das dobras de seu corpo o corpo de minha espécie. A ternura de minha espécie faz curativos nas feridas da minha espécie. Minha espécie abre desesperadamente seu coração e sua alma a minha espécie. Minha espécie ilumina a noite de minha espécie.
Mas tão grande é a versatilidade volátil da minha espécie que basta um arranhão com a unha para que ela caia prosternada de novo diante da morte.
Assim é minha espécie que amassa o pão da vida e compartilha o pão da morte.
A sede de paz da minha espécie é um fio de palha carregado pela violência de minha espécie. A animalidade humana da minha espécie é uma lágrima afogada na torrente da desumanidade humana da minha espécie. A devoção de minha espécie é um punhado de terra arrancada do continente de ferocidade da minha espécie. A coragem da minha espécie diante da morte é um grão de areia diante da covardia da minha espécie que se entrega à morte dando a morte à sua espécie.
Pois minha espécie inventou mil maneiras de assassinar minha espécie, mas nenhuma única maneira de amar continuamente os membros da sua espécie.
Amar sua espécie está acima das forças da minha espécie.
Todas as fontes de fraternidade e compaixão de minha espécie, todas as capacidades de sentir e de pensar da minha espécie são insuficientes para conseguir amar continuamente uma tal espécie.
É preciso ser uma joia da espécie para não condenar às gemônias uma espécie tão limitada e destrutiva como minha espécie. É por isso que minha espécie celebra as joias de sua espécie que conseguem não envergonhar sua espécie.
Mas minha espécie é invejosa demais e ciumenta para celebrar vivas as joias de sua espécie. Minha espécie não celebra se não estão mortos os benfeitores de sua espécie e se lava das suas infâmias pelo remorso.
Assim é minha espécie que adora o remorso e os profetas do remorso que lhe intimam a se arrepender para melhor se submeter à morte. Assim é minha espécie sempre ganhadora na loteria da morte.
O coração da minha espécie é a cova metafísica da morte.
Mas no seu coração minha espécie não cessa de chorar a morte e seus mortos.
Tal é minha espécie que chora as vítimas e os mortos dos quais ela preenche a história da minha espécie.
Tal é minha espécie que celebra a medula da vida nos ossos da morte.
Minha pobre espécie sofre da doença e da dor da morte.
Minha infeliz espécie enlouquecida pela morte se joga loucamente no pescoço da morte. Minha miserável espécie morre de ter dado nome à morte.
Como celebrar essa trágica espécie que se debate mortalmente em seu terror de morte?
Como celebrar a insubmissão da minha espécie subserviente da minha espécie, o riso cósmico da minha espécie diante da inconsequência da minha espécie, a revolta tenaz da minha espécie contra a tirania da minha espécie, a doçura delicada da minha espécie ultrajada pela brutalidade da minha espécie, a resistência inflexível da minha espécie torturada por minha espécie, a dignidade da minha espécie humilhada por minha espécie, os tesouros da inteligência da minha espécie dilapidados pela tolice da minha espécie, a generosidade da minha espécie limada pela avareza da minha espécie, a engenhosidade da minha espécie engambelada pela rapacidade da minha espécie, a potência da minha espécie submergida pela impotência da minha espécie, a lucidez da minha espécie aniquilada pela cegueira da minha espécie, a grandeza da minha espécie corroída pela mesquinhez da minha espécie, a esperança da minha espécie sufocada sob o desespero da minha espécie, a rebelião obstinada da minha espécie esmagada pela minha espécie, os soluços da minha espécie conduzida pela minha espécie no vale da morte?
extrait de IL Y A DES CHOSES QUE NON, Editions Bruno Doucey